Mundos Suspensos

MEMÓRIAS DA SUSPENSÃO DO MUNDO, por António Mega Ferreira (Outubro 2021)

Resumindo numa fórmula feliz a originalidade da pintura de Tiepolo, o ensaísta italiano Roberto Calasso fala de “um coeficiente de anti-gravidade” que carateriza as figuras que representa nas suas encenações pictóricas. Apetece-me tomar de empréstimo a qualificação de Calasso para, toutes proportions gardées, a aplicar a esta importante seleção de fotografias de Marc Sarkis Gulbenkian. Porque, de facto, se há coisa que liga entre si a maioria das fotografias deste autor é essa espécie de vertigem que nos incita a soltarmos os pés da terra, a ascendermos bem acima do nosso plano de sobrevivência, buscando um instante de desejada imponderabilidade que só é acessível à representação gráfica: a gravidade é a nossa segurança e a nossa condenação; a imponderabilidade é do domínio da representação.
Nesta busca de surpreender esses momentos “congelados” em que a nossa condição terrena se poderia talvez transmutar noutra dimensão (a de seres alados ou de anjos), o fotógrafo surpreende gestos, poses e flutuações que só acontecem no plano da fotografia: nenhum de nós seria capaz de recordar, ainda que os visse presencialmente, qualquer destes momentos, realmente inscritos num contínuo que é a nossa perceção do tempo, que é fluxo ininterrupto e não sucessão de momentos singulares.
E, no entanto, a natureza, a simples natureza, oferece-nos a possibilidade de idealizarmos o que seriam mundos suspensos, como os que sobrevivem à passagem impetuosa das águas das cheias, como os que emergem, fantasmáticos, de névoas, neblinas, nevoeiros, como os que resistem em formações rochosas milenares. Em todos, é como se o tempo se detivesse para deixar passar o tempo, como se o movimento se suspendesse numa eterna fixidez que o contraria, como se a irresistível pulsão que nos chama para cima se confrontasse com a inexorável lei da gravidade. Nas fotografias de Marc Gulbenkian, as coisas (as cidades, os montes, os lagos) vivem o mesmo momento imóvel que entrevemos no instantâneo que surpreende a dança dos dervixes rodopiantes ou o salto do acrobata: o que aqui se documenta são momentos de suspensão do mundo, da grande e impossível vitória sobre a gravidade e o tempo que nos acorrentam. O que nos apetece mesmo é aprisionarmos na memória estes momentos e fazê-los o nosso breviário para a eternidade.

Legendas das fotografias por Eduardo Pinheiro